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Revolução de IA ainda não aconteceu, mas é inevitável, diz especialista

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Atualizado por Júlia V. Kurtz

As novas ferramentas de inteligência artificial prometem causar uma revolução na forma que a sociedade se organiza. Mas essa revolução, na verdade, começou a muitos anos com o advento de tecnologias que permitiram que os modelos de linguagem evoluíssem.

O diretor executivo da Qintess, Kendji Wolf, trabalha com essas tecnologias há mais de 20 anos. Ele é formado em estatística pela UNICAMP, com pós-graduação em Marketing pela FGV, MBA pela Fundação Dom Cabral com especialização no IEDE (Barcelona) e Internet of Things no MIT.

Com mais de 20 anos trabalhando com Analytics, Machine Learning, Big Data, IA, conquistou sua carreira em empresas como VIA, Santander, Telefônica/Vivo, Bank Boston e TIM. É também professor do curso de Analytics aplicado a BIG DATA na PECE-POLI (USP) e do MBA em Customer Experience na SEDA Executive Education.

Ele falou com o BeInCryto sobre como essas tecnologias vão impactar a sociedade no futuro.

  • Como você parou no setor de machine learning?

Eu me formei em estatística pela Unicamp há mais de 20 anos. Na época, esta era uma carreira que ninguém conhecida. A minha estratégia era cursar estatística porque eu queria entrar na faculdade e, como o primeiro ano de exatas era o mesmo para todos os cursos, no final do primeiro ano eu pretendia trocar para engenharia civil. Portanto, eu usei a estatística como porta de entrada para a faculdade que eu queria.

Só que quando surgiu a oportunidade de mudar, eu não mudei. Eu participei de uma série de palestras de alunos, ex-alunos e executivos e todos diziam que o futuro estava na leitura e na alálise de dados. Usar esses dados para tomar decisões em empresas.

É algo que, hoje, nós chamamos de “cultura de dados”. Antes ela não se chamava assim, mas as pessoas falavam sobre o assunto. Os principais executivos falavam que precisavam tomar decisões e, em muitas delas, usavam dados para ajudar. E trabalhar com dados é estatístico.

Então eu cursei estatística e, quando cheguei ao mercado de trabalho, eu percebi um problema: eu estava falando uma linguagem que ninguém mais falava, que ninguém mais entendia. Ou seja, o meu primeiro ano de estágio e o meu segundo emprego, de analista júnior, foi complicado.

Eu até tive ajuda de pessoas que sabiam um pouco do meio. Só que, na verdade, eu só sabia a parte técnica e não sabia nada de negócios. Então eu fiz uma pós-graduação em marketing justamente pra isso. Eu pensei: “bom, se ninguém vai aprender a minha língua, eu vou ter que aprender a língua deles”. E foi algo que eu gostei muito, tanto que depois eu fiz um MBA.

Essa transição aconteceu justamente porque eu tinha dificuldade de explicar o que eu tinha feito, os meus resultados. Eles estavam certos, mas as pessoas tinham dificuldade de entender isso.

Com o tempo, eu fui me aprimorando, mas acho que resolvi boa parte do problema. Quando eu olho para trás, eu fico muito grato pela persistência que eu tive. Ao longo desses 20 anos, eu tinha tudo para desistir porque demorava para sentir os resultados.

  • Como é trabalhar com tecnologias e ideias inovadoras que ainda não são comuns no mercado?

Você faz um piloto e acaba não implementando, aí você vê o primeiro caso começar a funcionar e análisa os dados, depois desenvolve o algoritmo, coloca uma IA para testar e isso funciona. O grande case é quando nós fizemos isso para a venda de telefones pós-pagos em uma operadora. Você tem que saber para quem vender, quanto vender, qual o potencial econômico da pessoa para que ela consiga consumir o produto e pagar. E isso deu um super resultado.

Com o tempo, você vê outras empresas e outros segmentos adotando a mesma prática. Você vê o começo, o meio e o fim de uma prática e, por fim, vê vários casos. Aí as pessoas veem que funciona mesmo e que você tinha razão;

Ao longo desses anos, nós tivemos dois grandes momentos em que vencemos barreiras, uma delas relacionadas a Big Data. A primeira é que você tinha pouco acesso à informação e muitas delas eram restritas. Portanto, você precisava trabalhar com pouca informação e tomar grandes decisões.

Com o tempo, isso mudou, mas você ainda tinha um problema computacional. Ou seja, você tinha muita informação, mas não tinha como armazenar ou processar.

O primeiro problema a estatística resolve. O problema é quando você tem muita informação e não sabe o que fazer com aquilo, não imagina como pode processar. A Big Data resolve isso.

  • Como funciona big data?

Big data é um sistema, um software. Mas também é um jeito de pensar ou fazer computação. Em resumo é um sistema com altíssimo poder de computação. Na literatura, você vai encontrar os 3 Vs dos dados: velocidade, variedade e volume.

E big data é algo que se baseia nessas variáveis. Por exemplo, se você tive um petabyte, que é uma quantidade enorme de informação, para processar em 1 ano, isso não precisa de big data, porque o tempo não é um fator crítico. A mesma coisa se você tiver apenas 1 byte, porque o volume é muito baixo. É possível processar isso em milissegundos.

Big data, portanto, é quando você junta essas duas combinações: muita informação para processar em pouco tempo. E é isso que ela consegue te dar. Um exemplo prático: quando você assiste a um filme, você vê muitas imagens com muita informação para processar. Você precisa entender esse filme em tempo real.

E essa informação vai ser importante para que você compre algo ou evite uma fraude. Você analisa grandes volumes de dados, consegue uma informação e age com base nela. Em um ambiente tradicional, você não consegue tratar a informação, pois daria muito trabalho pra fazer.

  • Como isso se relaciona com o conceito de machine learning?

O machine learning evolui a passos largos depois que o big data se tornou mais comum. Quando falamos desse termo, estamos falando daquilo que faz com que uma máquina consiga aprender.

Mas, como ela aprende? É um processo quase igual ao de uma pessoa. Isso significa que ela analisa um conjunto de dados e faz previsões. Em seguida, ela reforça seu conhecimento dependendo de qual previsão estava certa e qual estava errada. Da próxima vez que ela for executar o mesmo algoritmo, a máquina consegue ver onde acertou e onde errou e evitar reproduzir o mesmo erro.

Ou seja, você usa o input da primeira série para melhorar a segunda, usa o da segunda para melhorar a terceira e assim por diante. É igual ao ser humano, que aprende com os erros que comete.

Um fator importante nisso é o deep lane, onde quase não há interação manual. Ou seja, são as máquinas que tomam suas próprias decisões e aprendem cada vez mais com isso. Esse conceito de machine learning nós chamávamos de estatística de previsão há 20 anos, antes da big data.

Todas essas técnicas antigas, hoje, nós chamamos pelo termo guarda-chuva de machine learning. Existem outros, como, por exemplo, a regressão logística, que já foi usada também pela indústria financeira.

  • O mercado brasileiro tem dificuldade para adotar essas novas tecnologias?

Isso é verdade. Teve um caso clássico em que nós apresentamos uma análise de dados para a diretora de uma empresa em que eu trabalhava no Rio Grande do Sul.

Era uma análise robusta e sofisticada. Ela nos perguntou onde nós havíamos testado aquilo, onde que vimos dar certo. Nós dissemos que estávamos apresentando para ela e queríamos que ela fosse a primeira.

Em resumo, ela encerrou a reunião em menos de 30 segundos. Ela disse que nós não íamos testar nada na empresa dela a não ser que conseguíssemos demonstrar que funcionou em outro lugar.

Esta não foi a única vez que isso ocorreu. Existe uma barreira que nós precisamos atravessar. E quando você faz um piloto, você trabalha com uma amostra pequena e um grupo de controle para mostrar que ele funciona.

Na verdade, poucas pessoas gostam de ser pioneiras e estão dispostas a assumir esse risco em suas operações. O brasileiro é avesso ao risco, e com razão. Você precisa de artifícios para provar que algo funciona.

  • Muito se fala que o advento das ferramentas de inteligência artificial vai mudar a sociedade. E nós temos visto, nos últimos meses, o surgimento de novos modelos de linguagem cada vez mais avançados. Você acha que nós já chegamos nesse ponto de inversão?

Eu acho que ainda não chegamos nesse ponto, mas já estamos no meio do caminho. Nós já vemos alguns exemplos do que vai vir, coisas que estão presentes na nossa vida, mas são exemplos pequenos, como aqueles robôs aspiradores que limpam a casa. É um exemplo de inteligência artificial pura que nós já vimos na época dos Jetsons, há 30 anos.

Atualmente, nós falamos muito de carros autônomos. Há laboratórios que já usam dentro de um contexto limitado. Mas é algo que, quando vier para a sociedade, vai mudar cadeias produtivas e o patamar da sociedade.

A minha estimativa é que os tratores vão puxar essa fila, porque operam em ambientes mais controlados. O risco de haver algo como um atropelamento – que é uma das questões éticas do carro autônomo – no agro é menor. Ou seja, é mais fácil ter uma colheitadeira automática do que um carro liberado.

E aí voltamos para a questão anterior: por que o fazendeiro vai colocar boa parte da safra dele nas mãos de um robô que não foi testado? Ele está disposto a fazer isso sendo o primeiro? Se ele for o terceiro ou o quarto teste, ele vai aderir, com certeza.

Mas nós também temos muitas outras coisas, como a geladeira que compra coisas para você. A internet das coisas (IoT) está chegando no Brasil e são patamares que a gente vai subir. São evoluções da sociedade com as quais não estamos acostumados.

Hoje em dia nós já estamos acostumados a assistir a coisas no celular por causa da alta velocidade da internet e da qualidade de transmissão de dados. Por isso que eu acho que não estamos mais no começo da jornada. Estamos perto do meio, mas longe do momento em que as máquinas tomem quase todas as decisões ou prevaleçam sobre as vontades humanas.

  • Nós usamos machine learning para treinar modelos de linguagem há mais de dez anos. Já vimos casos em que empresas disponibilizaram seus sistemas ao público, que usou essa oportunidade para fazer o sistema aprender termos ofensivos e até racistas. Como lidar com isso?

Essa é uma questão bastante ampla porque, se você parar para pensar, toda a tecnologia, ou pelo menos grande parte dela, foi desenvolvida por homens brancos. Eles foram as primeiras pessoas a entrar nas faculdades e dar os primeiros passos nessa jornada.

A participação feminina e a de outras étnicas só surgiu anos depois, mas ainda se discute pouco a respeito disso. Mesmo alguém com etnia oriental tem a chance de perpetuar um viés ocidental branco.

Mas esse é um primeiro passo importante que já foi dado: colocar o problema em cima da mesa. O segundo é que discutir se a tecnologia é isenta de qualquer tipo de viés de gênero, sociedade, raça ou opção sexual.

E como testar isso? A parte computacional, com big data e machine learning, pode ser resolvida. Depois você testa os algoritmos para ver o que ele mudou na prática. É um trabalho de muita discussão ética e que requer muito investimento em diversidade.

Isso inclui cientistas de dados e gestores que lideram empresas e requer, principalmente muito foco depois que esse algoritmo for finalizado. Porque você precisa testar e garantir que esse viés tenha sumido e que não se perpetue.

  • Há uma discussão ética sobre carros automáticos em acidentes. Até que ponto eles vão proteger seus motoristas em situações em que, para fazer isso, seja necessário machucar um número maior de pessoas? Nós já encontramos alguma forma de solucionar esse dilema?

Essa é, talvez, a questão mais delicada de todas. Porque quando o ser humano tira uma habilitação para dirigir, ele tem esse risco inerente. Então nós apontamos o dedo para o carro automático, mas esquecemos que nós também temos esse risco.

E, de acordo com os testes, o risco com seres humanos é muito maior do que o com o carro autônomo. E muitas pessoas já estiveram nessa situação, em que qualquer decisão que elas tomem vai causar alguma fatalidade. É um tipo de situação que saiu do controle do motorista.

É algo que todo mundo discute e ninguém sabe a resposta. Porque se alguém soubesse, já teria a atirado em cima da mesa e colocado uma pedra em cima desse assunto.

Há outros problemas com carros automáticos mais simples de resolver. Um deles é o tratamento de imagens, algo que já foi bastante discutido. Por exemplo, o carro confundir o semáforo amarelo com o pôr do sol.

Tem essa questão das câmeras, a questão das pessoas e a questão ética em cima disso tudo. Uma coisa que nós apostamos é que o sistema de prevenção dessas situações seja bastante evoluído, porque o carro precisa ter um poder de reação rápido diante de um sinal de perigo.

É preciso proteger o motorista e todos os que estejam por perto de maneira que ele não precise machucar ninguém.

  • A inteligência artificial vai mudar o mercado de buscas?

Vai ser uma grande mudança. Quem acompanhou a chegada do Google lembra que a página inicial era uma página branca sem propaganda que está no ar há 20, 25 anos. E chega uma hora em que o monopólio acaba. Não é diferente de outras indústrias.

Nós já vimos vários monopólios comerciais, petrolíferos, do agro, serem rompidos. E nós vamos ver uma grande briga porque a Microsoft tem poder econômico para confrontar o Google.

E a empresa viu a oportunidade de comprar essa tecnologia, porque se o próprio Google compra [o ChatGPT], o monopólio está mantido. Então espera-se que a Microsoft comece a ganhar relevância dentro desse tema e que o ChatGPT seja cada vez mais presente.

Ele vai mudar não só a questão de buscas, porque ele facilita muito quando você começa uma pesquisa, mas não só aí. A ferramenta também ajuda no final, para comprovar se você chegou a uma conclusão válida ou, pelo menos, verificar se a tese que você defende tem respaldo em outros lugares.

Ele facilita muito a produção de texto, músicas, arte. E nós vamos ter que enfrentar, como sociedade, como lidamos com isso.

Será que a música produzida por uma inteligência artificial vai ter o mesmo valor que a produzida por um humano?

Ou a tese de doutorado de um cientista que levou mais de quatro anos para ser escrita vai ter o mesmo valor que a que foi escrita por um chatbot em 4.000 segundos?

Eu não tenho dúvidas de que o Google, pela primeira vez em sua história, está enfrentando um tubarão do mesmo tamanho. E quem ganhar essa briga não vai ganhar a sociedade, lógico.

Mas pode ter certeza de que o Google está bem atento com isso.

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Júlia V. Kurtz
Editora-chefe do BeInCrypto Brasil. Jornalista de dados com formação pelo Knight Center for Journalism in the Americas da Universidade do Texas, possui 10 anos de experiência na cobertura de tecnologia pela Globo e, agora, está se aventurando pelo mundo cripto. Tem passagens na Gazeta do Povo e no Portal UOL.
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